Ontem (19) o Secretário Nacional de Governo Digital, Luis Felipe Monteiro, participou em Bruxelas (Bélgica) – como representante do governo brasileiro e país convidado – do evento “E-Leaders” promovido pelos países membros da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O evento, que prossegue hoje na capital belga, foi a oportunidade de o governo brasileiro mostrar as realizações que vem promovendo no país através da “transformação digital”.
Dentre as “transformações” que o Governo Bolsonaro credita para si como realizações está o caso do INSS, em que Luis Felipe anunciou que a digitalização de todos os serviços foi concluída em julho deste ano.
“É um dos principais marcos (…) Já são 10 milhões de solicitações por ano que agora o brasileiro pode fazer sem sair de casa nem pegar fila e trânsito”. E acrescenta: “É mais qualidade de vida para o cidadão”.
Bom, aí temos um problema.
Alguém, por favor, me explique, como o Governo Bolsonaro já chegou à fantástica marca de 10 milhões de solicitações de serviços online feitas pelos segurados do INSS – por ano – se este governo existe há apenas oito meses e 20 dias?
Também se puderem, me expliquem como um secretário, cujo órgão tem apenas “meia dúzia” de burocratas e “especialistas” em Governo Digital, conseguiu a façanha de integrar e digitalizar todos os sistemas previdenciários? O secretário simplesmente omitiu que o INSS é o principal cliente da Dataprev – Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social, a verdadeira responsável por esse feito que o governo agora credita para si.
Eu só posso acreditar em duas hipóteses: há um surto de amnésia nos integrantes deste Governo Bolsonaro, sobretudo, nos burocratas que até ontem faziam parte de governos anteriores. Ou então há um surto de hipocrisia e má-fé de um grupo que, para se manter no poder, não importa que coloração tenha o governo, faz tudo para surfar nessa crista da onda. Até bajular e faltar com a verdade publicamente e no exterior, ao não anunciar que o principal agente transformador neste país está com os dias contados, numa fila de privatizações de empresas estatais.
Mas o Secretário Nacional de Governo Digital Luis Felipe Monteiro foi além.
“A política de transformação digital se tornou uma agenda prioritária do governo. Isso é tão importante que tira das costas do cidadão, seja o trabalhador ou empresário, a necessidade de deslocamentos, juntada de documentos, idas a cartórios e todos os processos burocráticos que são tão caros para a nossa economia e travavam o crescimento até aqui”, ressaltou por meio de nota oficial do Ministério da Economia.
Ou seja: este gênio credita para si e sua equipe a “transformação digital” que vem ocorrendo nos últimos meses, sem dar créditos ao fato de que ela é parte de uma estratégia, um processo que começou no país nos últimos anos, e notadamente ganhou essa condição de “política estratégica” no Governo Michel Temer, do qual fez parte.
O Governo Bolsonaro tem essa característica: passar a borracha no passado, negá-lo, enquanto cria uma nova versão de História que atenda ao seu viés político. Mas já que é assim, vamos ajudar Luis Felipe Monteiro a se reencontrar com o passado.
Primeiro, ele não faz parte dessa casta de “gênios” que o ministro da Economia Paulo Guedes contrabandeou para dentro do governo nos últimos meses. Desde abril de 2018, ainda no Governo Temer, o secretário Luiz Felipe vem despontando como um dos “homens fortes” na área de governança digital.
Foi nessa época que ele assumiu a então Secretaria de Tecnologia da Informação, do extinto Ministério do Planejamento, em substituição a Marcelo Pagotti. Este, sim, foi quem deu o pontapé inicial para a Estratégia de Governo Digital no Brasil, com o apoio dos presidentes do Serpro e da Dataprev, na época: Glória Guimarães e André Magalhães. Entretanto não foi Pagotti quem criou essa estratégia. Ela foi lançada em 2015, ainda no Governo Dilma Roussef.
Tem mais: Luis Felipe, na época do SETIC, Marcelo Pagotti, já estava no Ministério do Planejamento como secretário-adjunto, portanto, não pode ser considerado o gênio da transformação digital. Talvez e no máximo “um dos”, já que o projeto foi concebido por uma equipe técnica e não apenas ele. Os puxa-sacos que estão com ele em Bruxelas talvez confirmem isso, pois muitos faziam parte da mesma equipe.
Estatais
A omissão de Luis Felipe Monteiro sobre o papel que as empresas estatais desempenharam em todo o processo em curso de “transformação digital” chega a ser criminosa. Ninguém mais do que ele sabe disso, já que ganha um “salário indireto” como integrante nos Conselhos de Administração das duas empresas: Serpro e Dataprev.
Criminosa, não por ganhar dinheiro público ao participar de reuniões esporádicas nas empresas. Isso se dá pelo fato de que, ao estar participando de reunião da OCDE, Luis Felipe Monteiro tinha por obrigação reconhecer o papel dessas estatais no processo de “transformação digital” do Governo Bolsonaro e, também, conhecer que essa entidade internacional já avaliou recentemente a situação do Brasil em Governança Digital. E, em dado momento do seu relatório, elogiou a participação do Serpro e da Dataprev nesse processo.
Vejamos esse trecho do relatório que trata do papel das estatais e tece até críticas à falta de um direcionamento governamental para uma boa política estratégia de governança digital, que pode ser acessado na própria página do Ministério da Economia:
“O panorama brasileiro para a prestação de serviços digitais para o setor público é caracterizado pela existência de duas empresas estatais: o Serviço Federal de Processamento de Dados – Serpro (criada em 1964) e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social – Dataprev (criada em 1974). Ambas as empresas são grandes fornecedores de serviços em tecnologias digitais para o setor público, abrangendo atividades diversas como desenvolvimento de software, manutenção de hardware, soluções em nuvem e manutenção do banco de dados, dentre outras.
Sendo empresas públicas, Serpro e Dataprev são beneficiadas por regras especiais de aquisição que tornam o processo de contratação menos burocrático para instituições públicas. De acordo com os representantes de ambas as empresas entrevistadas durante a missão de revisão de pares, cerca de um quinto do orçamento federal para gastos públicos em TI, em 2016, foram direcionados para estas empresas.
A existência de duas empresas públicas que desenvolvem soluções específicas para o setor público apresenta algumas vantagens. Os produtos são projetados com base em requisitos do setor público desde a sua concepção e, desta forma, uma certa coerência adicional passa a ser considerada a partir das soluções fornecidas.
No entanto, alguns dos entrevistados durante a missão de revisão de pares também expuseram várias situações de aprisionamento tecnológico na provisão de serviços, bem como ofertas consideradas não-competitivas quando comparadas com os preços de mercado.
Neste sentido, o governo brasileiro poderia se beneficiar de uma política estratégica para o aperfeiçoamento dos gastos em tecnologias digitais no setor público, a fim de:
l – Melhorar o alinhamento entre os investimentos em tecnologias digitais e as prioridades estratégicas definidas pela Estratégia de Governança Digital;
2 – Gerar economias por meio de procedimentos de agregação de demanda e eliminação de sobreposições;
3 – Incentivar a utilização de padrões digitais em aquisições em TI para promover a interoperabilidade no setor público;
4 – Promover a progressiva adoção de padrões de contratação aberta no setor público;
5 – Contribuir para o aumento da transparência pelo esclarecimento dos critérios e métodos utilizados para compras governamentais;
6 – Promover a colaboração e abordagens inovadoras para a encomenda de bens e serviços em TI.
Essa política tende a apoiar a evolução de uma mentalidade de comissionamento, assim como a adoção de ações estratégicas para promover a abertura e o engajamento, bem como a crescente adoção de abordagens orientadas ao usuário.
A transformação da relação entre fornecedores e o Estado, a aceleração de iniciativas de construção de capacidade, e a promoção da compra de autosserviço são algumas das questões críticas que poderiam ser tratadas em uma nova abordagem de comissionamento digital”, diz o relatório.
Portanto, se houvesse honestidade intelectual nessa discussão sobre privatização de empresas estatais deficitárias e pouco produtivas para os resultados finalísticos do Estado Brasileiro, certamente não estaria em discussão a venda do Serpro e da Dataprev.
Muito menos elas seriam esquecidas em discursos para estrangeiros sobre processos de “transformação digital”, em que são usadas exaustivamente pelos agentes públicos, mas não são reconhecidas como peça fundamental para os bons resultados que estão alcançando por intermédio delas.
*Teremos uma segunda reportagem sobre o assunto. Aguardem.