
No último domingo, a imprensa pernambucana estampou a notícia que as empresas de tecnologia do Estado decidiram se unir em torno de uma única organização representativa de classe: a “Aponti”. De acordo com o noticiário, a nova entidade, que poderá reunir 700 empresários, é uma fusão da regional pernambucana da Confederação Nacional das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro – PE) com a também regional da Associação para Promoção da Excelência do Software Brasileiro (Softex).
Na prática, isso significa que a Assespro, uma entidade que representa os interesses comerciais de empresários pernambucanos passará a controlar uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), diretamente vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e que atua em nome da pasta como executora de programas voltados para o desenvolvimento do setor com apoio de recursos federais.
Conflitos de interesses
A “Aponti” nasce com claros sinais de conflito de interesses. Será presidida pelo atual presidente da Softex-PE, o empresário Yves Nogueira, que é dono das empresas Di2win, Yolo coliving e TYNNO Negócios e Participações. Todas obviamente deverão estar filiadas à nova entidade. Yves é irmão de outros dois empresários ligados à area de TI: Ítalo Nogueira e Diogo Nogueira.
Ítalo é mais famoso, porque já foi presidente da Confederação Assespro (Nacional). Ele é Diretor Presidente na CMTECH e fundador e membro do conselho da Di2win, Yolo e Mexx. As duas primeiras Yves também tem participação societária, assim como o irmão Diogo Nogueira.

Na foto de lançamento oficial da nova entidade, Yves e Italo Nogueira não escondem que estão por trás dessa fusão. Assim como também participa da festa o empresário Rodrigo Bezerra de Vasconcelos (canto esquerdo da imagem) que é sócio dos irmãos Nogueira nas empresas CMTECH e MEXX. Os demais integrantes na imagem são representantes da Assespro-PE.
Yves que já era presidente da Softex de Pernambuco, agora ganha mais musculatura política junto ao MCTI com a “Aponti”, pois chegará defendendo os interesses de pelo menos 700 empresas de TI pernambucanas, interessadas em recursos federais para programas de inovação e capacitação técnica. Sem contar que teve o dedo dele, a intervenção feita pela ministra Luciana Santos, na eleição para a presidência da Softex Nacional.
Dinheiro Público
A Softex de Pernambuco, que se fundiu agora à Assespro no Estado, já é responsável pela execução do programa criado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) no valor de R$ 27 milhões, denominado “Bolsa Futuro Digital”.
O programa prevê a “capacitação de profissionais e estudantes para atuarem diretamente na área de desenvolvimento de software, diminuindo, assim, o crescente déficit de profissionais com esse perfil no mercado brasileiro”- explica cópia do objeto dele, em poder deste blog. Numa nota oficial divulgada pela Assessoria de Imprensa do MCTI, foi explicado que o programa será de 24 meses com a formação de 10 mil profissionais e alunos em 12 Estados.
O dinheiro para a Softex-PE foi alocado pelo MCTI após a aprovação do Comitê de Área de Tecnologia da Informação (CATI), organismo responsável pelas aplicações de recursos de custeio nas atividades de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), previstos desde 1990 pela Lei de Informática. Eles fazem parte dos Projetos Prioritários de Interesse Nacional (PPIs).
Já no início da execução desse programa, a Softex-Pernambuco foi alvo de denúncias de favorecimento na contratação de empresa que executaria parte do projeto. Ítalo Nogueira foi supostamente beneficiado pelo irmão e presidente da Softex-PE, Yves Nogueira, ao ganhar um contrato de R$ 2,9 milhões no programa “Bolsa Futuro Digital”. A vencedora desse contrato, a CMTECH Comércio & Serviços Ltda, é de propriedade de Ítalo Nogueira. Teve duas outras concorrentes, mas nem chegaram a fazer frente na disputa pelo contrato. Uma supostamente nem chegou a enviar proposta.
Yves para garantir o contrato para o irmão teria até passado por cima dos conselhos de funcionários do MCTI gestores do projeto, que recomendaram que a Softex-PE utilizasse sistemas já adquiridos pela organização. Mas OSCIP manteve a decisão de contratar a empresa de Italo Nogueira para executar um novo serviço. Nem o MCTI, nem a Softex-PE confirmam ou desmentem essa informação.
Jurisprudência
Uma OSCIP pode contratar empresas privadas diretamente, mas com limites e observância de determinados princípios, especialmente se estiver executando recursos federais. O marco legal para ser observado nestes casos é a Lei nº 9.790/1999 (que cria a qualificação de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e o Decreto nº 3.100/1999 (que regulamenta).
Nessa lei não há vedação direta à contratação de empresas privadas já que a OSCIP é uma entidade de direito privado e não uma autarquia. Mas, a regra deixa claro que, se uma OSCIP estiver executando recursos provenientes de convênios, termos de parceria ou contratos de gestão com entes públicos, ela deverá seguir todos princípios de publicidade, impessoalidade, moralidade e economicidade, previstos nos processos de contratações públicas. E isso está descrito claramente no Artigo 11, parágrafo 1º do Decreto nº 3.100/99, que regulamentou as suas atividades.
A contratação da empresa de Ítalo Nogueira pelo irmão Yves Nogueira (presidente da Softex-PE e agora da “Aponti”), num contrato assinado com o MCTI para execução de política pública, se for confirmada terá todas as características de conflito de interesses, descrito inclusive no Artigo 4º, inciso IV Lei nº 9.790/99: “A pessoa jurídica qualificada como OSCIP não poderá distribuir entre seus associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, nem vantagens ou benefícios, sob nenhuma forma ou pretexto“.
E o Decreto nº 3.100/99, regulamentou essa lei, torna a questão mais explícita ainda no Art. 11, parágrafo 2º: “As despesas realizadas com recursos públicos deverão ser compatíveis com os preços de mercado e não poderão beneficiar, direta ou indiretamente, dirigentes ou seus parentes.”
Controle
Desde a publicação por este blog de uma outra matéria, na qual ficava claro que houve uma movimentação de empresários de Pernambuco no controle do comando da Softex Nacional, que contou com a pressão política da ministra Luciana Santos (MCTI), não houve nenhuma movimentação aparente dos organismos de controle (CGU ou TCU) sobre a possibilidade real de conflito de interesses entre público e o privado na gestão de um contrato com recursos federais.
Uma investigação agora seria ainda mais evidente, pois o controle de empresários pernambucanos numa OSCIP que tem ligações financeiras diretamente com o MCTI (estima-se que a Softex tenha contrato de gestão em programas de mais de R$ 1 bilhão) mereceria uma avaliação se todo o arcabouço legal que permite com ressalvas a atuação desses entes privados no contato direto com entes públicos vem sendo observado.
Razão não faltaria para no mínimo um acompanhamento do caso pelo Tribunal de Contas da União, uma vez que a Corte já tornou claro que seria irregular a contratação de pessoa física ou jurídica vinculada a dirigentes da entidade convenente, ainda que a preços de mercado, por configurar potencial desvio de finalidade e afronta à moralidade administrativa.
E isso está descrito, por exemplo, no Acórdão 3023/2019-Primeira Câmara, cujo enunciado diz que: “É irregular a contratação por entidade privada, com recursos de convênio ou instrumento congênere, de empresa cujos sócios tenham relação de parentesco com os seus dirigentes, pois, embora possa realizar procedimento mais simplificado de licitação, a entidade privada está obrigada a preservar a impessoalidade e a moralidade administrativa na seleção de suas propostas e nas respectivas contratações“.
*Resta saber se a fusão da Softex e a Assespro pernambucanas, será uma tendência nacional entre as demais representações estaduais dessas entidades e que efeito isso terá sobre o cofre do MCTI.