Por Catiucia Silveira e Alisson Damascena* – A proteção de dados pessoais ganhou maior relevância no cenário nacional com a promulgação da Lei nº 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Antes dessa legislação, temas que tratavam da segurança da informação e privacidade eram regularizados globalmente por normas como o NIST e a ISO, que estabeleciam padrões de segurança, mas não abordavam diretamente a privacidade de dados pessoais no contexto jurídico brasileiro.
No país, leis como o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet tangenciavam o tema, mas ainda faltava uma regulamentação mais robusta e específica que lidasse diretamente com este assunto. Nesse contexto, surgiu a LGPD estabelecendo um marco legal que não apenas regulamentava a privacidade, mas também impulsionava o crescimento de um novo mercado voltado à proteção de dados pessoais, criando uma demanda crescente por profissionais especializados na implementação e adequação às exigências da lei. Afinal de contas não se tratava só de ler a lei, mas sim de como colocar essa adequação em prática dentro das organizações.
No entanto, apesar do crescimento dessa área, profissionais negros enfrentam desafios, tanto na busca por oportunidades quanto na ascensão profissional. Deste modo, este artigo visa explorar essas dificuldades e as barreiras estruturais e culturais que perpetuam essa realidade.
O Brasil é um país miscigenado, com uma população majoritariamente negra. E, segundo o Censo 2022, 55,5% da população brasileira se identifica como preta ou parda, o que representa a maioria da população do país desde 1991. No entanto, essa representatividade não se reflete de maneira proporcional no mercado de trabalho, especialmente em setores emergentes como o de proteção de dados.
Um relatório da Russell Reynolds Associates e Valence revela que 47% dos profissionais negros de tecnologia sentem que precisam mudar de empresa com mais frequência para avançar em suas carreiras, em contraste com apenas 28% dos profissionais não negros. Essa realidade destaca um ambiente de trabalho que, muitas vezes, não reconhece ou valoriza adequadamente o potencial e as contribuições dos profissionais negros, evidenciando a urgência de mudanças estruturais e culturais nas organizações.
A persistência dessa disparidade demonstra a urgência de políticas afirmativas e ações concretas para garantir a equidade racial no mercado de trabalho, proporcionando oportunidades iguais para todos os brasileiros.
O acesso à educação e à formação de qualidade continua sendo um dos maiores desafios para profissionais negros no Brasil. Recentemente o Ministério da Educação (MEC), em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), divulgou um estudo sobre desigualdade racial na educação. A pesquisa revelou que a oferta de educação pública não é a mesma para pretos, pardos e indígenas em comparação com estudantes brancos. Além disso, destacou que 86% dos 2,3 milhões de estudantes sem infraestrutura mínima são pretos, pardos ou indígenas.
Outro dado extraído de uma pesquisa realizada em 2018, revelou que a taxa de jovens brancos entre 18 e 24 anos cursando ou já tendo concluído o ensino superior era de 36,1%, enquanto para jovens negros (pretos ou pardos) esse número era de apenas 18,3%. Essa disparidade educacional aprofunda o fosso entre a população negra e setores emergentes como o de proteção de dados, onde a demanda por profissionais qualificados é crescente.
A falta de acesso a uma educação de qualidade limita significativamente as oportunidades de formação e impede que talentos negros contribuam com suas perspectivas únicas para o desenvolvimento de soluções inovadoras e eficazes na área de privacidade e segurança de dados. Esse ciclo vicioso, marcado pela exclusão e pela perpetuação de desigualdades históricas, é reforçado pela falta de iniciativas efetivas do mercado para democratizar o acesso à capacitação. Paradoxalmente, enquanto o discurso sobre diversidade se torna cada vez mais presente nas empresas, a prática demonstra que ainda há muito a ser feito para garantir que profissionais negros tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento e ascensão profissional.
A desigualdade sistêmica é refletida em diversos aspectos da sociedade e afeta diretamente o acesso a empregos e ao crescimento profissional. Até mesmo com a implementação de políticas de inclusão e diversidade – como ações afirmativas e programas corporativos, essas iniciativas ainda não são suficientes para reverter o quadro de desigualdade que se perpetua.
Dados do IBGE apontam que a taxa de desemprego entre negros (14,4%) é significativamente maior do que entre brancos (9,8%), o que nos leva a questionar: essas políticas realmente estão gerando mudanças concretas ou são apenas respostas superficiais para demandas urgentes? Se as disparidades continuam tão evidentes, qual é o verdadeiro impacto dessas iniciativas? Ou, talvez, o problema resida em sua execução, onde os programas são implementados mais para cumprir cotas e diretrizes do que para transformar efetivamente a estrutura social.
Outro levantamento, realizado pelo G1, revelou que no Estado de São Paulo apenas 38,3% das pessoas negras estavam ativas no mercado de trabalho, em comparação com 61,7% de pessoas brancas, demonstrando que o mercado não está absorvendo a força de trabalho negra na mesma proporção, especialmente em setores estratégicos e de alta especialização, como a tecnologia. A pesquisa PretaLab, em 2022, reforça essa análise ao mostrar que mulheres negras enfrentam uma taxa de desemprego quase duas vezes maior do que homens não-negros e ainda recebem salários 48% menores.
Ao analisar todos esses dados, surge uma pergunta inquietante, mas que requer um aprofundamento e enfrentamento: até quando as políticas de inclusão continuarão sendo vistas como medidas paliativas, em vez de serem reconhecidas como transformações estruturais que têm o potencial de alterar o destino de milhares de profissionais negros?
Apesar de todos os pontos levantados e questionados ao longo deste texto, que visam justamente provocar a reflexão sobre como esses profissionais poderão acessar espaços de poder e liderança, não podemos ignorar os avanços positivos que já ocorrem. Há sinais promissores, como os programas de trainee voltados para profissionais negros, bolsas de estudo oferecidas por algumas instituições para democratizar o acesso à educação e outras iniciativas semelhantes que têm contribuído para abrir caminhos. No entanto, persiste um abismo entre o que é feito e o que ainda precisa ser transformado. O espaço ainda carece de uma verdadeira democratização, onde oportunidades sejam realmente acessíveis a todos.
A diversidade precisa deixar de ser uma exceção e se tornar parte do tecido estrutural de nossas organizações e da sociedade. Como ponto de reflexão, podemos avaliar quantos professores negros, profissionais de destaque ou líderes negros encontramos ao longo de nossas jornadas de vida que tenham desempenhado um papel ativo e transformador em nossas formações. Ao ponderarmos sobre isso, é importante promovermos de forma coletiva uma mudança através da oferta de oportunidades. É preciso que seja construída uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária, onde o potencial de todos, independentemente de cor ou origem, possa florescer através de pequenas ações diárias.
Alisson Damascena, Advogado especializado em compliance e proteção de dados pessoais, DPO as a Service e Mestrando pela Universidade Federal de Ouro Preto
Catiucia Silveira; Advogada; DPO; Consultora em Privacidade e Proteção de Dados; Presidente da Comissão de Diversidade e Equidade do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD)