Plano Brasileiro de Inteligência Artificial vira palanque para OpenAI

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que completou um ano no dia 30 de julho de forma despercebida da parte do governo, provavelmente porque teria pouco para mostrar ou entregar, será debatido nesta quarta-feira (10) na Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Gestores públicos estão convidados a participar de um evento que terá apenas um único objetivo: dar espaço para a OpenAI se consolidar como a ferramenta de IA da Administração Pública Federal. Nenhuma outra big tech foi convidada a participar e mostrar o seu modelo. O privilégio concedido para a OpenAi foi graças ao lobby exercido por uma consutoria de ex-funcionarias da Meta, que vem atuando pela empresa no governo.

É curioso como um governo que criou um plano para atender a um anseio do presidente Lula, de desenvolver no país uma IA generativa e “soberana”, esteja agora se aproximando de uma empresa estrangeira ávida por novos negócios no Brasil. O evento da Enap sequer buscou ouvir outras opiniões sobre Inteligência Artificial no mundo, empresas que também são líderes nessa área: Google DeepMind, Microsoft, Amazon Web Services (AWS), NVIDIA, IBM, Meta (Facebook), Tesla, Baidu, Alibaba e a DeepSeek.

A aproximação da Enap com a OpenAI é resultado do trabalho da Alandar Consultoria, uma empresa criada por ex-funcionárias da Meta. “A Alandar é uma consultoria liderada por mulheres com mais de 15 anos de experiência na indústria de tecnologia, no setor público, privado e terceiro setor, dedicada a mudar percepções e moldar conversas públicas”; é como se define a empresa, no perfil de sua página oficial.

E complementa: “Somos uma consultoria para aqueles que desejam influenciar tomadores de decisão com estratégias”.

A Enap até onde conste não toma “decisões estratégicas” no governo em relação ao uso de Inteligência Artificial. Entretanto, tem a capilaridade dentro do governo e capacidade de influenciar gestores públicos para o uso de novas tecnologias, o que a torna fundamental para quem deseja ingressar na Administração Pública chancelada com uma boa imagem.

Numa busca sobre as movimentações da Alandar no mercado de tecnologia, não foi possível identificar algum contrato da empresa com a OpenAI, parceria ou algo no gênero. No entando a consultoria também é uma das “apoiadoras” do evento da Enap. E não é a primeira vez que a Alandar e a OpenAI andam juntas dentro do governo.

No dia 11 de março deste ano a OpenAI foi recebida pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Conforme registro da Imprensa do próprio ministério, o encontro serviu para o ministro debater com a big tech “o uso da inteligência artificial para auxiliar em ações de combate ao crime”.

Lewandowski conversou com o presidente jurídico da OpenAI, Che Chang (esquerda da foto), que esteve no ministério acompanhado do gerente de Políticas Públicas para a América Latina da OpenAI, Nicolas Robinson Andrade (à direita na foto).

Ao lado do ministro estava o secretário-executivo, Manoel Carlos de Almeida Neto. “Vemos muito potencial em utilizar esses recursos para a formulação de políticas na área da segurança pública, além de apoiar os entes federados com iniciativas desenvolvidas no âmbito da pasta”, relatou o secretário-executivo para a imprensa do Ministério da Justiça.

Embora não apareçam na foto, outras personagens ligadas à OpenAI estiveram presentes no encontro com Lewandowski, segundo a imprensa do ministério: a vice-presidente jurídica da OpenAI, Ashley Pantuliano; e a representante da Alandar Consultoria, Natália Paiva. Ela já foi Chefe de Políticas Públicas para a América Latina da Meta/Instagram, diretora-executiva da Transparência Brasil e consultora do setor público e social da McKinsey& Company. Atualmente é CEO da Alandar Consultoria.

Natália tem como sócia fundadora Daniele Kleiner, que já trabalhou entre os anos de 2013 e 2014 como assessora, na Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, durante a gestão da ministra Gleisi Hofmann, no Governo Dilma Rousseff. Ela deixou o cargo em julho de 2014, após Gleisi pedir exoneração da Casa Civil, sendo substituída por Aloizio Mercadante.

Daniele é quem mais teve contato com as big techs, pois já trabalhou em duas delas. Entre os anos de 2015 a 2021 ela trabalhou na área de Políticas de Segurança & Bem-Estar (América Latina) da Facebook/Meta. Em 2018 chegou a assumir a Gerência de Políticas de Segurança – Facebook Brasil.

Em fevereiro de 2022 Daniele migrou para o Twitter e lá liderou a área de governo, políticas públicas e filantropia. Em diversos eventos Natália tem comparecido como consultora da Alandar. O mais recente ocorreu na Câmara dos Deputados, onde ela participou de audiência para debater o “ECA Digital” – projeto que aguarda a sanção presidencial e visa combater abusos contra crianças e adolescentes nos meios eletrônicos.

Assédio às Autoridades

Em Brasília hoje existem dois tipos de profissionais atuando diretamente para influenciar autoridades, seja na aquisição de bens ou serviços de tecnologia ou nos debates sobre novas legislações nesta área. Há os que exercem a atividade de “Relações Institucionais” e normalmente são representantes de empresas e Associações setoriais de TICs facilmente identificáveis, pois não escondem as suas atividades.

Na outra ponta atuam os lobistas, representantes de grandes empresas ou setores econômicos, que não tem vínculo profissional e atuam como “consultorias”. Elas vêm tentando influenciar no setor público em geral à favor de empresas internacionais, que não querem ou não podem se expor publicamente, devido aos seus rígidos códigos internos de conduta.

Este blog não está acusando em nenhum dos casos que essas empresas ou entidades estejam cometendo algum crime. Apenas destaca que em alguns casos, normalmente quando se apresentam como sendo uma instituição “sem fins lucrativos”, não são transparentes o suficiente para a opinião pública conhecer quem está por trás pagando, para que ela reverta algum resultado prejudicial para a atividade de determinada empresa, seja no Congresso Nacional ou no governo.

A Alandar Consultoria está claramente trabalhando para dar visibilidade para a OpenAI, mas o lado bom é que não se declara como sendo “sem fins lucrativos”. Já demonstrou ter um espaço privilegiado de interlocução com o governo, pois não é todo o dia que um ministro da Justiça abre espaço em sua agenda para debater Inteligência Artificial na Segurança Pública.

Não é crime a Alandar atuar nesse sentido se tem os contatos certos nos lugares certos. Porém, é questionável o papel da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) nessa história, já que tem acesso à massa de servidores públicos federais e sua influência é grande. Questionável também porque privilegia apenas um modelo de Inteligência Artificial num evento em que poderia ter chamado outras para mostrar opções ao ChatGPT da Open AI.

E mais ainda, porque a Enap se vale do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial para apresentar um possível fornecedor ao governo, que contradiz com o desejo do presidente Lula. No dia 30 de julho de 2024 o governo lançou o PBIA com proposta de investimentos de R$ 23 bilhões para serem gastos em quatro anos.

O plano foi anunciado com festa durante a abertura da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e contou com a participação do presidente Lula. Que foi o maior inspirador do plano e publicamente defendeu que o Brasil deve ter o seu modelo de Inteligência Artificial Generativa para compartilhar com os demais países no Sul Global. Lula exatamente propôs o contrário daquilo que a Enap está fazendo agora: introduzir ao setor público um modelo norte-americano. E justo num momento em que o país vive uma crise comercial com os Estados Unidos.

Aliás, é de se perguntar à ministra Luciana Santos, do MCTI: por onde anda a empresa WideLabs, que foi privilegiada com uma audiência no seu gabinete, virou patrocinadora da 5ª Conferência (fato raro) e estava desenvolvendo um modelo de IA generativa “tupiniquim”? E cadê a Positivo Informática e a tal solução para o supercomputador Santos Dumont do Laboratório Nacional de Computação Científica?

Depois de um ano de espera, o que o PBIA gerou de resultados?

Do ponto de vista concreto, palpável, uma revista de 103 páginas impressas em papel fino elaborada pelo CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, contendo as mesmas promessas feitas no ano passado. Segundo informações, o plano está sendo revisto no Comitê Executivo do Comitê Interministerial para a Transformação Digital – CITDigital.