Plano Brasileiro de IA: um projeto grandioso, com alguns resultados duvidosos

No dia 30 de julho o presidente Lula lançou com festa o novo “Plano Brasileiro de Inteligência Artificial”, na abertura da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5CNCTI). Em seu aspecto geral o plano é grandioso, tem proposta de investir nas empresas brasileiras e na capacitação de mão de obra, o que é excelente. Mas algumas das metas previstas são bastante duvidosas de serem cumpridas. Em alguns casos, o plano é um compilado daquilo que já vem sendo executado através de políticas implementadas em ministérios ou em governos anteriores, mas depois de uma repaginada ficaram com cara de novidade.

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial guarda algumas premissas consideradas interessantes para o desenvolvimento da tecnologia no país e outras que não parecem passar de pirotecnia política, aquela velha mania de se falar em “país do futuro”; com algumas incongruências que poderão a longo prazo acabar sendo criticadas e, em consequência, gestores responsabilizados pelo desperdício de dinheiro público.

O ponto elogiável seria o alinhamento com o programa “Nova Indústria Brasil”, não fosse o fato de ter sido lançado pelo governo, mas até hoje não se sabe claramente como funcionará nos próximos dez anos, prazo previsto para a renovação da indústria brasileira. “Com mais investimento, produtividade, exportação, inovação e empregos, por meio da neoindustrialização”; segundo palavras do vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria e presidente do Conselho de Política Industrial (Copin), Léo de Castro. Aliás, o Plano de Inteligência Artificial tem mais clareza de objetivos, embora alguns questionáveis, do que o plano nascido da CNI e encampado pelo governo.

Premissas como, o uso da IA com o “foco no bem-estar social”, parecem estar muito longe de serem alcançadas no atual cenário de transformação digital. Possibilidades de melhora na atuação em áreas como o da Saúde e da Educação, por exemplo, existem, mas outras áreas sociais poderão sofrer com essa guinada tecnológica e exigirão esforços para garantir essa proposta de bem-estar social.

A discussão da “soberania dos dados” voltou com força no governo. Entretanto, as iniciativas que andam surgindo nos levam crer numa soberania relativa, já que a dependência tecnológica das grandes empresas multinacionais de nuvem continua gigantesca no país. Mesmo assim, o plano de IA promete um “Brasil soberano” em armazenamento e mineração de dados. Mas essa questão nem chega a ser novidade, pois a Dataprev iniciou o governo se preparando para ser a locomotiva da infraestrutura nacional de dados, que contará com a integração das bases armazenadas no Serpro, que decidiu surfar na onda promocional da “nuvem soberana”, mesmo não apresentando nada de concreto desde 2020.

Outra premissa sobre o “uso ético da IA”, parece patinar completamente no Brasil. As “big techs” estão conseguindo barrar toda e qualquer iniciativa de controle e regulação nessa área. O governo quase não se expõe no Congresso para não acabar assumindo novas derrotas políticas. Também parece uma carta de intenções, e sabe-se lá quando esse “uso ético” virá e em quê condições. Quem duvida, basta ver o que ocorre na área de proteção de dados, em que afora a pífia ação contra a Meta, justamente pelo uso de dados pessoais de brasileiros para treinar seu modelo de Inteligência Artificial, nada mais foi feito para coibir abusos no país.

*Enfim, as “premissas” estão descritas no quadro acima, avaliem como acharem melhor.

Eixos

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial está descrito em 83 páginas contendo cinco eixos principais.

Eixo 1: Infraestrutura e Desenvolvimento de IA
Eixo 2: Difusão, Formação e Capacitação em IA
Eixo 3: IA para Melhoria dos Serviços Públicos
Eixo 4: IA para Inovação Empresarial
Eixo 5: Apoio ao Processo Regulatório e de Governança da IA

É no Eixo 4 que estará concentrada a maior parte da destinação dos R$ 23 bilhões previstos para serem executados nos próximos anos.

Logo de cara constata-se a discrepência de números envolvidos para a sua execução até 2028. Enquanto o governo está bancando R$ 13 bilhões nessa “parceria” com a iniciativa privada, num total de R$ 22 bilhões que sairão de alguma forma dos cofres públicos, sejam em recursos não reembolsáveis ou através de linhas de financiamento da Finep, com apoio do BNDES; as empresas privadas irão por em contrapartida apenas R$ 1 bilhão. Vendo os números abaixo, dá para conferir que, quando o Brasil está na era dos governos do PT o discurso político do “Estado Mínimo” não é aplicado pelas empresas com aquela veemência que já assistimos nos governos neoliberais.

Deixando de lado a birra ideológica, quando se trata de gastar dinheiro público; a proposta de investimentos no setor privado tem seus méritos, mas também algumas bizarrices. Na parte que é necessária, constata-se que o PBIA pretende investir em algumas ações que poderão gerar bons frutos no futuro, como no caso do incentivo ao desenvolvimento das startups (R$ 400 milhões em recursos não reembolsáveis) e formação e capacitação de mão de obra. O dinheiro a fundo perdido será destinado pelo BNDES, controlado pelo MDIC e também sairá do cofre do FNDCT, supostamente controlado pelo MCTI. Qual a proporção de desembolso de cada unidade? O PBIA não explica.

Mudança de controle

A primeira constatação que se faz do Eixo 4 do Plano Brasileiro de IA é que mudou o controle político dos investimentos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), para o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). O que contradiz a informação dada no lançamento pelo presidente Lula, de que pediu “um plano aos cientistas” e ele foi completamente elaborado por eles.

Pelo que se vê na proposta, toda a comunidade científica não parece ter sido chamada a debater nada deste plano, salvo algumas entidades “paraestatais” como, a Academia Brasileira de Ciências. A SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, outra que vive pendurada no governo, por exemplo, dificilmente foi chamada para debater a proposta, que segundo o MCTI foi gerada a partir de um amplo debate da comunidade em geral – que ninguém viu – e dos setores interessados em Inteligência Artificial.

É dificil acreditar que a SBPC negue tal informação, quando se sabe que em julho, ao se reunir no Pará para a 76ª Reunião Anual (RA), o tema Inteligência Artificial ganhou destaque na palestra proferida pelo professor Eduardo Coelho Cerqueira, da Universidade Federal do Pará (UFPA), mas a proposta dele de utilizar a IA para “impulsionar a bioeconomia na Região Amazônica”, não saiu do evento e nem ecoou na tal comunidade científica que teria participado da elaboração deste plano.

Tem algo nesta direção no PBIA? Onde? No máximo irão gastar R$ 1 milhão para “Mapeamento com uso de IA para localização de espécies vegetais de interesse no Bioma Amazônico”, projeto desenvolvido para catalogar espécies vegetais do bioma amazônico. Aliás, onde estava Marina Silva nesse evento de lançamento do PBIA? Qual será a participação do Ministério do Meio Ambiente?

Se não discutiram o uso da tecnologia para o conhecimento científico, é óbvio que também não houve discussão aprofundada do comprometimento até 2028 de 100% dos recursos no montante do atual Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (parte financeira e não reembolsável) para propostas que estão na conta do MDIC. Não é à toa que de R$ 23 bilhões dos recursos previstos para o desenvolvimento da IA; cerca de R$ 13,7 bilhões foram canalizados do FNDCT para o MDIC executar os projetos de Inovação, e nem todos são sobre IA.

O plano mostra claramente que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços assumiu o controle orçamentário do PBIA, deixando para o MCTI o papel de mero repassador desses recursos que serão aplicados nas seguintes frentes:

  • Desenvolvimento de soluções de IA para desafios da indústria brasileira (incluindo comércio e serviços) e para aumento da produtividade.
  • Estruturação e fortalecimento da cadeia produtiva de IA no Brasil.
  • Estabelecimento de datacenters “verdes” de alta capacidade, alimentados por energias renováveis e otimizados para uso sustentável de recursos hídricos.
  • Criação de centros de apoio à IA na indústria, fornecendo recursos técnicos e consultoria especializada.
  • Fomento e aceleração de startups especializadas em IA.
  • Incorporação e retenção de talentos de IA nas empresas brasileiras.

Desvios

Os uso dos recursos em alguns casos no texto descritivo deixa margem para se acreditar que nem tudo será para o benefício da IA. Aparecem nas entrelinhas do texto algumas “pegadinhas” e não está claro se o objetivo real da destinação de parte do dinheiro não estará servindo para outros fins.

Por exemplo, o plano mostra que dos R$ 13,7 bilhões voltados para a Inovação em Inteligência Artificial, cerca de R$ 667 milhões serão destinados para a EMBRAPII, uma organização social vinculada à Confederção Nacional da Indústria, que tem contrato de gestão com o MCTI. Embora o plano descreva que esse dinheiro servirá para “apoio à cadeia de valor da IA”, com a estruturação 25 unidades da “Rede EMBRAPII de Competência em IA”, o texto não deixa claro esse objetivo.

Ao contrario, nele também foi informado que uma parte dos recursos será canalizado (ou desviada, entendam como preferir) para outros “Centros de Competência”, já criados pela entidade. Mas que não necessariamente atuam hoje em projetos voltados para Inovação, com Inteligência Artificial.

Em fevereiro deste ano o governo já havia anunciado publicamente a criação desses centros numa parceria do MCTI com a EMBRAPII, e a meta seria trabalhar em oito temas diferentes de Inovação voltadas para a cadeia produtiva. No discurso de lançamento feito por técnicos do MCTI, a proposta inicial seria a criar nove Centros de Competência com um investimento total de R$ 495 milhões da EMBRAPII, valor que será alavancado por meio de parcerias com novas instituições investidoras e contratos a serem firmados com empresas associadas.

Então, deduz-se que dos R$ 667 milhões a serem investidos na ação dos Centros de IA, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações está remanejando cerca de R$ 172 milhões da conta do FNDCT – Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico, para serem somados aos R$ 495 milhões que a CNI promete colocar de investimento e tirar do papel os diversos projetos de interesse da entidade. Mas que não guardam necessariamente relação com Inteligência Artificial.

Avaliando os centros do foco de interesse da EMBRAPPI anunciados na parceria com o governo, apenas um está realmente se propondo a atuar no desenvolvimento da Inteligência Artificial. Será o Centro de Competência EMBRAPII em Tecnologias Imersivas Aplicadas a Mundos Virtuais – cuja a unidade gestora será o CEIA-UFG – Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (GO).

Os oito demais centros privados, que não guardam ligação com IA que devem ser estruturados por uma organização social da CNI e a ajudinha do dinheiro do FNDCT – Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, serão os seguintes:

  • Centro de Competência Embrapii em Open RAN.
    Unidade gestora: Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações – CPqD
  • Centro de Competência Embrapii em Tecnologia Quântica.
    Unidade gestora: SENAI Cimatec – Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia (BA);
  • Centro de Competência Embrapii em Tecnologia e Infraestruturas de Conectividade 5G e 6G.
    Unidade gestora: Inatel – Inatel Instituto Nacional de Telecomunicações (MG);
  • Centro de Competência Embrapii em Plataformas de Hardware Inteligentes e Conectadas – Smart Gride e Mobilidade Elétrica.
    Unidade gestora: Lactec – Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento (PR);
  • Centro de Competência Embrapii em Plataformas de Hardware Inteligentes e Conectadas – Agricultura Digital.
    Unidade gestora: Instituto SENAI de Inovação (ISI) em Sistemas de Sensoriamento (RS);
  • Centro de Competência Embrapii em Plataformas de Hardware Inteligentes e Conectadas.
    Unidade gestora: Virtus-UFCG – Núcleo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Tecnologia da Informação, Comunicação e Automação, da Universidade Federal de Campina Grande (PB); e
  • Centro de Competência em Terapias Avançadas.
    Unidade gestora: Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein.

Então fica o questionamento dos motivos pelos quais o plano governamental irá financiar com R$ 172 milhões a estruturação de centros criados pelo do setor privado e deixar de ajudar outras iniciativas dentro da própria área governamental que pretendem desenvolver competências em IA.

O MCTI poderia explicar melhor essa situação, pois é interessante constatar no PBIA que o próprio governo informa que ainda terá que se desdobrar para arrumar dinheiro no próximo Orçamento Geral da União (2025 ou através de suplementação no de 2024), para tirar do papel algumas promessas contidas no plano:

*Outras propostas polêmicas ainda serão abordadas pelo blog no contexto geral do Plano de IA.

(Foto principal: Marcelo Camargo/Agência Brasil)