Por Rosane Chene* – Inovação, Mudança e Resiliência. Essas habilidades, tão fundamentais em diversas áreas, tanto no mundo do trabalho como na vida pessoal. São características capazes de conectar mulheres de realidades aparentemente distintas da sociedade e, principalmente, inspirá-las frente às desigualdades de gênero. Nesse caso, em especial, ressalto as mulheres periféricas e o seu poder de inspiração para mulheres em outros setores, como o da tecnologia.
Na tecnologia, infelizmente, ainda que tenham avanços na temática de gênero, a presença feminina é um desafio a ser superado. De acordo com dados do Relatório de Diversidade da Brasscom, a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), as mulheres são apenas 38% da força de trabalho em tecnologia. Esse número diminui ainda mais quando olhamos para cargos de liderança, onde apenas 18% dos líderes em empresas de tecnologia são mulheres.
Em relação ao salário, o cenário também não é muito otimista. Segundo estudo da consultoria McKinsey, em média, as mulheres na área de tecnologia ganham até 30% menos do que seus colegas. O contexto praticamente não muda quando o tema é maternidade.
Além da luta para conciliar as demandas do trabalho e o cuidado com os filhos – mulheres gastam em média 18,5 horas semanais na economia do cuidado -, essas mães muitas vezes enfrentam obstáculos adicionais. De acordo com pesquisa da Harvard Business Review, cerca de 79% das mães são menos propensas a serem contratadas e 50% delas têm menos chances de serem promovidas, em comparação com mulheres sem filhos.
Com a discriminação e os estereótipos, essas mulheres têm como resultado o sentimento de desvalorização, que pode afetar diretamente os processos de progressão na carreira.
Infelizmente, a partir de cenários em que a mulher ainda busca representatividade e principalmente equidade, torna-se possível conectar realidades e traçar um paralelo dessas vivências. Como é o caso também das mulheres das periferias. Explico o porquê.
Cerca de 63% dos lares nas periferias do país são chefiados por mulheres pretas e pardas, segundo dados do IBGE. Além de serem a maioria nesses territórios, são elas que enfrentam maior desvantagem no mercado de trabalho, com uma taxa de desemprego de mais de 13%.
Com poucas oportunidades, essas mulheres, por vezes mães solos, vivem com os filhos sem qualquer rede de apoio próxima. Além disso, as creches e escolas públicas que poderiam oferecer suporte a essa realidade, infelizmente não atendem de forma integral, o que impossibilita essas mulheres de, por exemplo, estudar. Segundo dados da FGV, mais de 50% das mães solo não possuem ensino superior ou ensino médio completo.
Mesmo que não seja mãe solo, essa mulher periférica em situação de vulnerabilidade, com a falta de acesso a políticas públicas que garantam sua integridade física e mental, por vezes é vítima de violência doméstica.
Sem mencionar as questões estruturais que precisam lidar diariamente, como o acesso restrito redes de esgoto e água tratada – só em São Paulo, 43 mil pessoas vivem sem um banheiro em suas casas –, problemas crônicos de acesso à moradia, abastecimento de água, limpeza urbana, a falta de áreas verdes e espaços culturais e de lazer próximas de casa. Com esse contexto, essas mulheres têm a sua segurança, saúde e bem-estar comprometidos.
Apesar dos inúmeros desafios enfrentados, as mulheres periféricas, assim como as mulheres da tecnologia, buscam formas de subverter essa realidade desigual. De acordo com dados da Rede Nossa São Paulo, aproximadamente 64% das microempresas na periferia de São Paulo, são lideradas por mulheres. Esses negócios não apenas proporcionam meios de subsistência, mas também promovem o desenvolvimento do comércio local.
Além disso, cerca de 78% das mulheres periféricas participam ou são líderes comunitárias, de acordo com estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) exercendo assim, um papel fundamental de articulação e suporte a outras mulheres que vivem em situação ainda mais vulnerável.
Mesmo com as dificuldades, têm surgido mulheres referência na área da tecnologia que servem de inspiração para outras que buscam ingressar no setor. É justamente pela presença dessas lideranças que organizações precisam mudar sua postura diante das desigualdades de gênero, adotando uma cultura cada vez mais inclusiva e equitativa.
Por anos, acompanhei de perto o setor de tecnologia, enquanto executiva de desenvolvimento de software. Os desafios foram inúmeros e o apoio de mulheres e alguns poucos homens que viam meu potencial enquanto profissional, foram fundamentais para alterar essa lógica desigual e quebrar barreiras. Já no setor social, área que atuo e acompanho diariamente há mais de 21 anos, as mulheres mesmo com todos os reveses também conseguem se manter resilientes e se reinventar.
Embora existam diferenças, a realidade de desigualdades de gênero conecta mulheres periféricas e da tecnologia, que podem enfrentar os desafios a partir da união de expertises e inspiração mútua.
Para que isso aconteça, é crucial que, primeiro, haja um reconhecimento e valorização do saber e da experiência das mulheres periféricas. Isso inclui criar oportunidades para que elas compartilhem seus conhecimentos e perspectivas. Nesse sentido, as organizações do Terceiro Setor que estão presente nas periferias do país todo também oferecem um espaço para potencializar essas mulheres e impulsioná-las. A partir de atividades que promovem, por exemplo, a formação profissional, desenvolvendo a autonomia e empoderamento que reflete em si em outras mulheres das comunidades.
Já para mulheres na área de tecnologia é preciso estabelecer, por meio de políticas públicas, o incentivo a formação de jovens no setor. As ONGs, por exemplo, têm contribuído para a profissionalização de mulheres no mercado da tecnologia e colaborado com oportunidades no segmento. Além disso, é necessário dar espaço para elas mostrem seu potencial e consigam se desenvolver para além dos preconceitos.
A verdade é que à medida que nos esforçamos para construir uma sociedade mais inclusiva e diversa, é essencial que reconheçamos e valorizemos os saberes das mulheres, sobretudo as que mais sofrem com a invisibilidade, seja de governos ou empresas. Seus ensinamentos sobre resiliência, criatividade e colaboração podem ajudar a impulsionar a inovação e a promover um ambiente de trabalho mais equitativo e acolhedor para todas as mulheres, seja no setor da tecnologia ou outros.
Ao incorporar a potência da mulher periférica, poderemos construir um futuro mais justo e inclusivo para todas as mulheres, independente da realidade social.
*Rosane Chene, CEO e co-fundadora da ONG PAC.