Por Jeovani Salomão* – Neste momento está ocorrendo a disputa para determinar o campeão mundial de xadrez. Defende o título o norueguês Magnus Carlsen, primeiro do ranking e já detentor do título desde 2013, jogando contra o desafiante russo Ian Nepomniachtchi. A vantagem obtida pelo norueguês já é tão significativa, que poucos veem possibilidade do resultado ser revertido.
Tal qual ocorre nos esportes em geral, também no mais famoso jogo de tabuleiro do mundo, existe um ranking para determinar os melhores competidores do planeta. Os pontos de cada jogador são obtidos a cada partida, dependendo do resultado e da diferença entre os pontos dos jogadores chamado de rating, em um sistema bem elaborado pelo físico húngaro, naturalizado americano, Arpad Elo e vigente desde 1960. Quanto mais partidas se joga, melhor se pode classificar o nível do esportista.
Justamente o atual campeão mundial, o qual segundo minhas previsões continuará com o título, foi quem já obteve a maior pontuação da história, 2882 pontos. Um estudo realizado por intermédio da análise de milhares de partidas, tornou-se base para uma tese de doutorado em estatística de Danilo Machado Pires, na qual ele aponta quais os percentuais de vitória em relação a diferença de rating.
Segundo o trabalho, um jogador que esteja 100 pontos na frente do outro possui 63,82% de chance de ganhar a partida se estiver de brancas (por convenção as peças brancas fazem o primeiro lance, o que confere a elas uma pequena vantagem). Sou capaz de afirmar, embora não faça parte do estudo, que 300 pontos de rating são determinantes para o resultado de uma disputa, independentemente do lado que joga o adversário mais forte.
Em 1997, o mundo viu, pela primeira vez, o campeão mundial Gary Kasparov, um dos maiores ícones da modalidade de todos os tempos, ser derrotado pelo computador da IBM Deep Blue, em um encontro de 6 partidas, concluído com o placar de 3,5 a 2,5 para a máquina. Daquele momento em diante, não havia mais dúvida que o homem tinha sido superado pela sua criação, quando o assunto era o xadrez. De lá para cá, os avanços computacionais foram extraordinários, levando os competidores binários a um padrão de performance estonteante. Lider do ranking, o programa Stockfish tem um rating superior a incríveis 3500 pontos, ou seja, aproximadamente 700 pontos acima de qualquer marca humana.
Em 2020, foi lançada a série “O Gambito da Rainha” retratando uma história ficcional ambientada no final da década de 1950, na qual a personagem principal, Beth Harmon, supera diversos obstáculos até se tornar campeã mundial de xadrez, superando os maiores jogadores da época. O aclamado jogo possui 605 milhões de adeptos ao redor do mundo e foi ainda mais impulsionado pelo seriado. Segundo a Google, as buscas pelo passatempo cresceram 91% no Youtube. A Ebay, por sua vez, registrou um aumento de 273% na procura por tabuleiros. Com o efeito da pandemia, os aficionados on-line aumentaram substantivamente, assim como a busca por aulas, como relatam vários dos melhores jogadores brasileiros.
A questão que vem é tona é: por que continuamos a nos interessar por uma atividade na qual somos obsoletos? Por que continuar a praticar um esporte mental no qual já somos de forma irremediável superados pelos computadores? A resposta e as motivações devem variar de pessoa para pessoa, cada indivíduo é um universo em si próprio, mas uma reflexão sobre o comportamento geral da humanidade certamente vale à pena.
Começando por mim mesmo, e sem qualquer constrangimento, revelo que meu melhor rating no universo on-line foi de 1857, ou seja, sou um jogador bastante fraco para os praticantes profissionais, mas devo conseguir ganhar de qualquer um que não tenha estudado seriamente o jogo. Lembro-me da minha primeira participação em torneios oficiais, quando ainda era um menino, ocorrida contra o Adriano Valle. Não tive nenhuma chance na ocasião, perdi feio. Anos depois, descobri que o oponente tinha se dedicado com afinco na modalidade e, inclusive, sagrou-se campeão de Brasília por várias vezes. Como tenho diversos amigos enxadristas e já frequentei com alguma assiduidade os clubes locais dedicados ao jogo, tive o prazer de encontrar o Adriano em inúmeras ocasiões.
Nele, e em sua filosofia, começa minha resposta. Este exímio jogador sempre disse que o jogo em si era muito mais que uma competição. Ele possui uma teoria que os dois competidores produzem uma obra de arte ao se confrontarem no tabuleiro. Sempre enxergou uma beleza que vai muito além da vitória ou da derrota. Para ele, xadrez é um esporte sim, mas também é algo muito mais sublime.
Após ter assistido o seriado mencionado, descobri que as partidas que nele foram disputadas são integralmente baseadas em jogos reais, porém, em algum ponto, foram modificadas sob a consultoria de Grandes Mestres, em especial Gary Kasparov, para serem ainda mais fantásticas. Quando vi os embates completos, tive esta sensação de beleza. Não me deparei apenas com um mero jogo de tabuleiro, mas com verdadeiras obras de arte, as quais, para serem devidamente apreciadas, requerem um conhecimento sofisticado.
Mas as explicações não se encerram por aí. Evidentemente, muitos encontram no xadrez uma distração, diversão e um exercício mental vigoroso para se manterem em forma. Tanto quanto os músculos, nosso cérebro precisa estar em constante ação para não definhar rapidamente. No entanto, o ponto principal, sob minha perspectiva, é que somos irremediavelmente inquietos. Nós, humanos, não nos contentamos ou nos imobilizamos diante de um desafio, mesmo quando sabemos que já fomos superados. Continuamos em uma busca incansável pelo aprimoramento, somos curiosos, procuramos pelo novo na tentativa de melhor compreender a realidade, ampliar nossas experiências e sublimar nossa existência.
Tal característica é ressaltada em inúmeras obras de ficção científica, sendo responsável, muitas e muitas vezes, nas situações imaginárias, pela sobrevivência da espécie. Não importa, desta forma, que o computador seja melhor do que nós em certa atividade, vamos continuar nos divertindo, apreciando a beleza e nos aprimorando para que nos tornemos não melhores que a máquina, mas melhores que nós mesmos.
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.